8TALKS – Entrevista com Zico Goes: interatividade e inovação na TV brasileira


8TALKS – Entrevista com Zico Goes: interatividade e inovação na TV brasileira

Ninguém precisa ser um especialista do audiovisual para distinguir a qualidade de filmes, séries e programar de TV nacionais. Afinal, todos consumimos esses conteúdos e acabamos formando uma opinião com base na experiência como telespectador.

Agora, imagine como tem o olhar treinado um profissional que trabalha nesse mercado há décadas. , o quanto ele pode enriquecer com seu conhecimento e experiência. É exatamente sobre isso que conversamos com Zico Goes, antigo vice-presidente de conteúdo e desenvolvimento da MTV e, atualmente, da Fox, e sobre como a interatividade e a inovação moldaram e continuam moldando a TV brasileira.

8 Milímetros – Você tem a sua experiência na MTV, uma emissora super inovadora e ousada, numa época em que era mais difícil ser assim na TV aberta, quando o mercado era mais conservador e as pessoas tinham menos referências de conteúdo. Nós sentimos que é difícil ver essa inovação até hoje em dia. Você sente essa falta de inovação também e, se sim, você acha ruim?

Zico Góes – Bom, eu diria até o contrário: era mais fácil inovar, eu imagino, justamente porque ninguém fazia nada muito novo. Estou falando dos anos 80, 90 e até metade dos anos 2000. No começo, romper com aquilo que existia era fácil, porque só existia aquilo. Não tinha internet, por exemplo. A MTV fazia essas coisas ditas “descultivas” ou novas, mas a palavra inovação não estava no nosso cardápio. Não se chamava inovação de “inovação”, na época. Agora, tudo isso era como, no passado, falar de “interatividade”. Tinha que ser interativo! Mas, na televisão, não tem interatividade: o cara só ligava pelo telefone e falava. A internet muda isso tudo. A grande inovação não é de conteúdo, mas de meio. Eu acho que ainda está por vir uma inovação, de fato, de conteúdo. Você pode falar que a Netflix tem as melhores séries e, realmente, tem umas boas, mas…

8 mm – Algum argumento novo, mas no fundo, no fundo…

Zico – No fundo, é tudo a mesma coisa! Exatamente o que se fazia na “televisão antiga”. A internet, que é um meio inovador, faz a mesma coisa que sempre se fez. Só que com pior qualidade. Só isso!

8 mm – Aceita-se mais, né?! Só.

Zico – Exato! Acho que isso é muito importante. Talvez pelo fato de você ter acesso a isso, você aceita qualquer coisa: aquilo que é mais ou menos bom vira super bom e o que é ruim vira bom. Isso faz com que você não precise inovar, porque qualquer coisa pode ser considerada legal e nova.

8 mm – Não é algo surpreendente que se inventou, né?

Zico – Não é muito, não. Ao mesmo tempo, na MTV, era mais fácil inovar, pois a televisão era muito careta e precisava ser medida pelo Ibope, o que condiciona o tipo de coisa que é feito. Acaba se fazendo a mesma coisa, porque existe uma fórmula que dá dinheiro e é repetida. A MTV inovava porque não tinha outro jeito: ela não tinha filme, novela, nem nada disso.

Ex-diretor da MTV, Zico Goes fala sobre seus erros na gestão da emissora

8 mm – E nem Ibope né?

Zico – E nem Ibope! Pelo contrário: ficava devendo no final do mês pro Ibope. O que eu quero dizer é que, o que se inovou em termos de conteúdo, talvez não dê para ser chamado, de fato, “inovação”, mas, sim, um rompimento daquilo que era uma fórmula. A TV paga e a Netflix inovam, além da tecnologia, com uma certa ousadia que a TV aberta não podia ousar mais. A tecnologia faz mais gente ter acesso para ver e produzir também. 

8 mm – Imaginava que fosse mais difícil inovar porque, nos anos 90, você não tinha tantas referências como hoje. Agora o público exige mais. Antigamente, você tinha a TV aberta, um pouco de acesso à TV a cabo e pouca referência dos demais conteúdos. Hoje em dia, têm 897 programas de gastronomia e as pessoas assistiram todos os 897 programas de gastronomia! Perdem por coisas diferentes, né?

Zico – Então, você vê que muda a tecnologia, muda o acesso, mas a boiada vai atrás do mesmo. Dá para citar casos de ideias mais inovadoras e ousadas, como a série Black Mirror, por exemplo.

8 mm – É ousado em conteúdo, mas ainda não em formato.

Zico – É porque é o mesmo de sempre! Vou voltar à palavra “interatividade”, que era o que é a “inovação” hoje. Já existia interatividade na televisão: o Silvio Santos ligava, mandava uma carta… Isso era a interatividade nos anos 2000. A MTV fazia um pouco isso, mas não precisava de tanta tecnologia. Era o telefone, de novo, ou um bate papo ao vivo em que as pessoas podiam comentar o que estava passando na hora. 

Então, houve muito pedido para que fosse mais interativo. O apresentador estaria no ar, você falaria com ele e poderia escolher, por exemplo, em que parte do estádio você veria um jogo ao vivo, o que te dá um poder como espectador incrível! Isso era um projeto, mas custaria bilhões e a televisão não pode falar com uma pessoa por vez, tem que falar com várias. Então, a interatividade só era legal quando se transformava em alguma coisa divertida para os 99% do público que não estava interagindo. 

O que eu quero dizer é que muitas vezes existe uma pressão: tem que ser inovador, interativo, diferente, transmidiático… Mas tem coisas que não dá pra ser! Chega uma hora que você se pergunta: será que precisa disso tudo ou é só algo meio forçado?

8 mm –  E, nos últimos anos, houve um aumento da qualidade e da quantidade de produções com incentivos do governo e boas leis. Mas, agora, isso diminui. Como você, analisador de conteúdos, vê que está a produção de audiovisual hoje?

Zico – Isso talvez seja a grande inovação do mercado dos últimos 10 anos: potencializar e formar talentos para produzir o que não se produzia antes. Você pega uma Rede Globo, uma Record, ou um SBT: quem transmite o conteúdo também produz. Eram sempre as mesmas pessoas fazendo as mesmas coisas com qualidade, tecnologia, mas sem muita ousadia, porque não era preciso. Agora, com a lei de cota da produção nacional, esses produtores começaram a fazer outras coisas e isso foi muito bom. O mercado foi se capacitando, os canais e os produtores independentes foram aprendendo. Quem fazia filmes começou a fazer séries e trouxe um olhar para um produto de televisão que a própria televisão não tinha, e vice-versa. Ficou melhor! 

Hoje, posso dizer que, sim, tem muito produtor de série, roteirista e diretor fazendo coisas de alto nível. Na hora de medir o sucesso, por exemplo, tem séries brasileiras da Fox que vão melhor que as gringas famosas! Aí você pensa: espera aí, gastou 10x menos e foi melhor?! É porque, talvez, fale mais com aquele público…

Zico Goes na Fox como diretor da area de conteudo - foi GNT, MTV e Conspiraçao - Blue Bus

8 mm – Se pensar, historicamente, não temos uma indústria bem construída. Acho que leis como essa de cotas estão tentando um pouco isso também, criar uma indústria nacional para desenvolver profissionais, trazer e rodar mais dinheiro. Somos velhos no mercado de TV ou no publicitário, mas nesse de produção independente, de dramaturgia e de TV paga a gente é muito criança ainda, né?

Zico – Sim, a gente é criança, mas vai aprendendo. Se você olha pro lado, por exemplo, a Argentina e outro países começaram produções independentes antes que o Brasil. Talvez, a gente já esteja ultrapassando alguns países da América Latina porque era como se tivesse represado um monte de talento de gente que só faziam novelas e filmes que davam bilheteria, tipo comédia boba. Precisam adquirir musculatura.

8 mm – E espaço para inovação também, né? O que você disse, a Globo fez bem: diversos profissionais que aprenderam a fazer algo com qualidade, filmes que “fizeram” o mercado de cinema nacional, mas tudo padronizado. Agora, realmente teve uma oportunidade de dar uma inovada.

O que sobrou de lição desses 21 anos de MTV para o trabalho que você faz hoje e para sua carreira? Tanto boas quanto ruins.

Zico – Acho que a coisa mais importante que a MTV pode ensinar para qualquer um é não se levar à sério. Em qualquer trabalho, em qualquer instância, não achar que você é o dono da verdade. Isso faz você experimentar, errar mais e achar alguma coisa mais legal que a anterior. Outra coisa que aprendi muito foi a importância de criar, de fato, uma relação com sua audiência. Pelo fato da MTV ter sido um pouco bagunçada, principalmente no começo, passava meio batido o fato de que havia, de verdade, pessoas assistindo. Talvez isso tenha sido o lado bom e o ruim, porque acabou criando um canal muito livre, diferente, ousado e inovador.

Eu me lembro dessa cena: um redator escrevia um programa qualquer e mostrava para o colega que estava do lado. “E aí, o que você achou?”. “Caraca, muito legal”. E vamos embora! Não tinha uma relação com o público. Isso é algo que você não pode esquecer nunca! Quem é o seu interlocutor, que relação você quer ter com ele e que mensagem quer passar? A MTV demorou pra se dar conta disso.

8 mm – Boa parte dos grandes apresentadores que nós temos hoje vieram da MTV e são incríveis. A emissora formou bons profissionais, se você pensar nesses apresentadores que todo mundo conhece, mas também quem estava atrás das câmeras. Ao que você acha que se deve isso: a MTV era boa de escolher ou de formar? E como você acha que se replica?

Zico – Acho que são as duas coisas e a origem era a liberdade de fazer o que se queria e, justamente, diferente do que se fazia na época. Então, um apresentador de televisão, por exemplo, em qualquer lugar precisa de uma técnica, falar direitinho, boa dicção, ser apresentável, etc. Para a MTV, era o contrário! Ao criar um critério como esse, só pessoas parecidas entre si vão caber nesse gabarito. Você não dá chance a muita gente boa. Então, o critério era justamente pessoas que não tinham amarras ou vícios. Queríamos que a pessoa fosse o que ela era! Até porque, pela personalidade da MTV, queríamos autenticidade e dizer que, na televisão, existe as mesmas pessoas que ao redor de você. Acho que, no caso dos apresentadores, isso foi muito bom porque fez surgir muita gente que não entraria no gabarito: Cara “feio” e com uma dicção ruim, como o Thunder, ou meninas que não eram “as mais bonitas”, como a Astrid e a Penelope, não teriam chances em outros canais, mas na MTV tinham porque precisava só ser quem você era! Quanto aos que estão por trás das câmeras, era um pouco diferente. Também tinha isso de não entrar no gabarito, mas tinha a liberdade de outra maneira: ele podia exercer a criatividade livremente, ousar, criar, propor. Então, você acaba formando talentos que não poderiam dar vazão em outro lugar.

Desde que a MTV acabou, lá em 2013, tem pelo menos 4 ou 5 alunos de graduação fazendo seus tccs sobre a emissora todo ano. Ai eu pergunto: a pessoa tem 22 anos, que MTV assistiu? Era um neném, mas, mesmo assim, as pessoas acham que isso é um assunto acadêmico até hoje.

8 mm – Mas, se você pensar, mesmo que essa pessoa ainda não estivesse viva nos anos 90, isso tem a ver com o mercado que a gente tem hoje, então faz parte dessa história também. E, pra quem era vivo nos anos 90, a MTV era o canal mais legal, impressionante, que mais dava certo e o melhor que tinha. Quem é do mercado de TV entende exatamente o que aconteceu, mas quem não é realmente fica com essa questão de “o que deu errado?”, né?

Zico – Sim, e “o que deu de errado” foi que tudo mudou. Acho interessante isso, porque a internet atropelou a MTV, mas passou a fazer exatamente o que a emissora já fazia. Você encontra lá um tipo de Thunder, um tipo de programa que a MTV fazia, com essa liberdade de linguagem e tudo mais. Então, não é mais preciso uma MTV do jeito que ela era.

Diretor da MTV, Zico Góes comenta as demissões do canal, que segue no ar: 'Ainda estamos aqui' - Jornal O Globo

8 mm –  Se você pensar assim, a gente vai achar que Netflix vai acabar com a Globo.

Zico – Não sei se vai acabar mesmo, porque a Netflix se propõe a ser um streaming de ficção, a grosso modo, e de reality. Talvez, o que vai acontecer com essa emissora e outras é virar uma Netflix, como a Globoplay, e a TV paga vai acabar. Acho que vai ter os streamings, como Globoplay, Netflix e Disney+, e a TV aberta, que disponibiliza o que streaming não dá: o ao vivo.

8 mm –  Ainda tem um público que não consome streaming e que dá dinheiro pra Globo, SBT, Record. Eles ainda têm muitos anos sem precisar se preocupar com isso.

Zico – Eu também acho. Vai ser difícil a Netflix acabar com isso porque, bem ou mal, a televisão aberta, do jeito que a gente conhece, é um conforto para as pessoas. Se você gosta de um canal, você assiste e não se importa muito com o que está passando. Não tem que ficar indo atrás “que série que tá tendo aqui?”. Você liga a TV e se encosta no sofá. Isso eu acho que não vai acabar.

8 mm –  Até em termos de notícias, não precisamos ficar procurando: “vou assistir aqui o jornal que, em uma hora, ele me dá tudo mastigado e pronto”.

Zico – Não é só porque as pessoas não têm acesso à tecnologia, mas, sim, porque querem coisas simples. Eu não quero ficar procurando nada, quero que ligue e aconteça alguma coisa que eu não estava esperando.

8 mm –  Eu não sei se você também tem essa percepção, nós percebemos que, primeiro, são muitos anos ainda até a TV aberta perder seu público, mas uma emissora grande, por exemplo, como a Globo, está muito antenada com o mercado, né?

Zico – Embora ela siga aquela coisa “tradicionalzinha”, a mesma novela das 6 há 40, 50 anos, ainda está muito antenada com o mercado. Então, imagino que, ao longo dos anos, na hora que precisar se reinventar, ela vai. Até porque ela tem o que a gente fala que é o problema para qualquer coisa no audiovisual: a Globo tem dinheiro, né? Trabalhei na Globosat por um ano, no GNT, e era evidente o quanto a emissora investe nela mesma e nas pessoas que trabalham com ela, realmente se preparando para algum momento aí que, quando chega, estão preparados. Aí podem falar “ah mas demoraram demais”, mas eles se preparam mesmo e, quando entram, arrebentam!

8 mm – Quem tem 30 ou 40 anos pensa que estão demorando, mas quem tem 60 anos já diz que a novela “já não é tão boa quanto antigamente” ou que está faltando mais programas de gastronomia com a Ana Maria Braga. Eles conhecem um público que não querem abandonar.

Zico – Exatamente. Tanto que, para aquele mesmo público que assiste o Masterchef, um produto de TV paga que se mostrou sendo de boa audiência, a Globo foi atrás e fez um programa parecido agora. Então, também começa a olhar outros lugares e a fazer ou imitar outros formatos. A Globo é foda!

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