“O Gambito da Rainha”: como transmitir emoções sem diálogo

Xadrez é um esporte que mistura arte e ciência. Exige muita concentração, capacidade analítica e de probabilidades. Mas todos podemos combinar que é um jogo um tanto quanto monótono, sem muita ação física ou verbal, que acontece entre duas pessoas sentadas frente a frente com um tabuleiro no meio.

E, mesmo com essa temática como pano de fundo, “O Gambito da Rainha”, nova série da Netflix, ganhou o coração do público e conquistou milhões de fãs.

Como faz parte da natureza do jogo, a maioria das cenas de xadrez quase não tem diálogos. Mesmo assim, é possível sentir todas as emoções de forma tão clara como se estivessem sendo ditas com todas as letras. E isso só acontece graças ao trabalho combinado entre atuação, direção e edição, que coloca em prática a máxima “mostre, não fale”, tão presente nas produções do cineasta Scott Frank.

Mas como criar a tensão tão marcante na série sem diálogos? Para exemplificar como os elementos foram combinados para construir os sentimentos esperados, vamos analisar uma das cenas que acontece no segundo episódio, no primeiro torneio entre Harry Beltik and Beth Harmon, onde praticamente não há nenhum diálogo:

– Mesmo sem pronunciar uma palavra a respeito, podemos ver que Beth está brava pelo atraso do seu oponente através de suas expressões. Esse sentimento é reforçado quando a câmera “passeia” no entorno de Beth e cria um ângulo de baixo para cima, mostrando a cadeira vazia em frente a ela e colocando a protagonista acima do tabuleiro, criando uma sensação de poder e domínio da situação.

– Quando Beltik chega, conseguimos ver que ele realmente não está levando a jogadora a sério pela sua postura, gestos e até bocejo. Os cortes rápidos e os olhares de Beth vão mostrando sua irritação crescente perante o comportamento do adversário, o que a desestabiliza emocionalmente até que ela pede um intervalo.

– No banheiro, onde ela toma o remédio que usa para ficar mais focada, as emoções vão se transformando dentro dela. Beth vai ganhando mais confiança de que pode vencer o jogo. Esse momento de triunfo também é reforçado por um elemento importante da cena, a música de fundo, e o ângulo da câmera, que deixa a protagonista maior, dominando a cena.

– Essa cena do banheiro é vista como uma cena única, que serve como uma preparação para a continuação do jogo na sala ao lado. Quando Beth volta para a mesa, a expressão no rosto de Betlik mostra que ele notou que algo mudou.

– A partir daí, o embate entre os jogadores fica mais tenso, e esse sentimento também é transmitido com uma mudança de filmagem. Até então, as cenas eram mostradas pelo convencional ângulo acima do ombro dos atores. Agora, vemos mais closes, intensificando a tensão.

– Outra mudança na filmagem que transforma o clima é que, agora, há mais closes no tabuleiro e nos movimentos das peças, tirando o foco de Beltik. Os segundos a mais que as cenas permanecem nas peças mostra também que é exatamente onde está a atenção de Beth, cujos takes são misturados com cortes rápidos no olhar da jogadora.

– A jogada final, quando Beth coloca sua rainha bem na frente do Rei de Beltik, é cheia de significados. A percepção no olhar dele de que ela venceria o jogo, o embate homem/mulher num universo dominado por homens e que tem a mulher como vencedora. Mesmo quem não entende nada das regras do xadrez consegue perceber que há uma tensão crescente ali e que vai resultar no triunfo da protagonista.